Devaneios... Nada mais...

sexta-feira, junho 04, 2004

José...

"Ri... e o mundo rirá contigo; chora... e tu chorarás sozinho." -Ella Wilcox

José… Chamemos-lhe José… Ou melhor, como estamos em Portugal, Dr. José… (porque neste país quem concluí com sucesso, e muitas vezes mesmo sem sucesso, deixa de ser uma pessoal normal e passa a ser Dr., Dr.ª, Eng.º, Eng.ª, etc. num qualquer estado de “auto-Deusificação”… são as maravilhas de viver num país em que a mentalidade das pessoas ainda é muito estreita e rudimentar!) Dr. José era daquelas pessoas especiais, admirado por muitos, invejado por mais. Tinha tudo. Empresário de sucesso, uma noiva fantástica (não daquelas fabricadas numa clínica qualquer… uma mulher bonita, culta, interessante e invulgar), amigos q.b. , saúde de ferro. Apesar de todo o seu sucesso como empresário ligava pouco a dinheiro. A sua prenda ideal eram coisas mais pessoais, coisas simples como uma simples carta. O que mais gostava no mundo era aquilo que o dinheiro não podia comprar como um passeio ao pôr-do-sol, o som do riso, o chegar da primavera, entre muitas outras. A sua mentalidade era coisa rara… Não podia ver uma pessoa carente de ajuda, que não hesitava em pôr mãos à obra e tentar ajudar nesses problemas desse alguém. Acreditava que os amigos são para as ocasiões (fossem elas tristes ou alegres), que o amor movia mundos e fronteiras, e que no fundo o mundo era um sítio excelente para viver e a Vida algo de maravilhoso… Obviamente não era um santo… Como todos os habitantes deste planeta, tinha as suas falhas, tais como o orgulho. Há ainda umas características que não sei ao certo em que parte encaixar, se nos defeitos, se em virtudes: a sua inocência e ingenuidade… Penso que serão defeitos… Com o decorrer da história, certamente perceberás porque fiz essa avaliação.
Quem não o conhecesse decerto sentiria uma ponta de inveja… Os seus amigos viam-no quase como um monge… Sabiam que ele estava sempre presente quando precisavam fosse do que fosse, que os problemas não batiam à sua porta e que estava sempre em “maré alta” e nunca ninguém o viu triste ou desanimado. Mas os amigos não são só para os problemas, e inevitavelmente em todas as “festas” ou “desculpas para festas” lá estava ele…
No amor… ai o amor… Como não podia deixar de ser, era um romântico nato… Jantares ao pôr-do-sol numa praia deserta, cartas de amor, poemas, serenatas, etc. Ela por sua vez, parecia em sintonia completa com ele. Ele dizia mata, ela esfola. Qualquer pessoa que passasse por este casal não deixava de ficar enternecida…
A sua vida era um mar de rosas…
Só que a vida não é um mar de rosas, como todo o comum mortal sabe…
Certo dia chegou a casa, e quando se preparava para tomar um relaxante banho foi interrompido por um telefonema de Dr.ª Catarina, a sua noiva. Tinha uma novidade fantástica para lhe dar e que exigia ser comemorada…
O seu Mercedes, acabado de comprar, rapidamente os levou a um pacato restaurante na zona da Foz, virado para o rio Douro.
“- Pikachu, estou mesmo feliz… Tenho uma notícia fantástica para te dar!” exclamou Dr.ª Catarina enquanto decidiam o que haviam de jantar.
“- Recebi uma proposta do banco para ir trabalhar para uma sucursal em Castelo Branco. É excelente! Aumentam-me o salário em cerca de 50% e dizem que tenho sérias possibilidades de subir rapidamente no quadro.”
“- Muito bem! Parabéns! Isso é para entrar em vigor quando?” perguntou Dr. José, esperando que a proposta tivesse sido recusado e tentando organizar as suas ideias sobre se tal situação era de facto boa, ou não.
“- Querem que no início da próxima semana entre ao serviço lá. Quinta-feira tenho de ir lá tentar encontrar um sítio onde ficar enquanto não tenho o meu próprio espaço.”
A muito custo esboçou um sorriso amarelo. As palavras fugiam-lhe, não conseguia dizer nada. Tem de ser uma brincadeira dizia para si mesmo vezes conta. Inconscientemente soube que aquilo era o início do fim. Era um dos seus primeiros e mais duros encontros com a vida real. Afinal o que se diz na TV, rádios, jornais em crónicas, artigos, documentários elaborados por psicólogos, sociólogos e outros ólogos era mesmo verdade… A carreira e o dinheiro era a prioridade número 1 do ser humano moderno… Coisas como felicidade, partilha, bem estar, e outros valores há muito fora de moda, eram factos suplementares… São algo a atingir depois de ter dinheiro, notoriedade, fama… Por sinal todas elas coisas altamente voláteis… Para Dr. José, essas coisas eram as verdadeiras suplementares. O que interessava era a felicidade, o amor, os amigos, viver bem consigo próprio, fazer o que se gosta. No entanto, ali à sua frente estava a pessoa que escolheu para na história da sua vida, ajudar a representar o célebre “… e viveram felizes para sempre…”, dizendo que a sua situação actual não era a que esperava e que tinha de mudar por cerca de uns meros 600€… Parecia que lhe tinham espetado uma faca no coração… A sua visão do amor tinha sido dissolvida em apenas 5 minutos… As únicas palavras que conseguiu dizer foram:
“- E nós?”
“- Nós… Teremos de fazer um esforçozinho adicional… Temos os fim-de-semana e podemos falar todos os dias… Para isso existem os telefones…” respondeu-lhe de um modo algo sarcástico, “Além disso não tenciono ficar naquele fim do mundo para sempre! Serão só uns anos até ser promovida.”
“- E és promovida e vais para onde? Algarve, Alentejo, Lisboa?”
“- Bolas! Isto é uma coisa boa! Que egoísta!”
“- Desculpa. É apenas medo de te perder… De certeza que vamos ultrapassar isto facilmente!”
Tal não podia estar mais longe da realidade…
6 semanas passaram até o primeiro fim de semana que passavam inevitavelmente juntos não ter lugar, devido a um qualquer problema ter surgido à ultima da hora… Entretanto os telefonemas que inicialmente eram bi, tri, tetra, penta, hexa, centum, mille diários passarem a ser apenas diários, para passarem a acontecer apenas de dois em dois dias, para semanais, até só se falarem no fim de semana. E nesse fim-de-semana não se falaram… E na sétima semana tudo acabou… Ao entrar em Castelo Branco, Dr. José teve uma má sensação, como de algo de errado estivesse para acontecer. Se não o conhecesse bem, advinharia-lhe capacidades de vidente. Nesse fim de semana soube da notícia que mais receava… Dr.ª Catarina tinha conhecido uma pessoa nova… Segundo ela a sua cara-metade, se é que tal existe… E assim terminava uma relação de 5 anos… A sabedoria popular baseia-se sempre na realidade, e a realidade é que “longe da vista, longe do coração”…
Os meses que se seguiram foram igualmente difíceis… Inicialmente tentou espantar os seus fantasmas sozinho… Tentou ir a todas as “festas” e “desculpas para festas”, encontrar-se o mais possível com seus amigos… mas o seu comportamento não era mais o mesmo… No lugar da pessoa faladora e aberta estava agora alguém pouco dado a conversas e de sorriso difícil… Algo que também não o ajudava era todo o mundo da sua convivência andar comprometido e graças a isso sentir-se inúmeras vezes a mais ou um simples empecilho… Entretanto o seu comportamento mudou… Lentamente deixou de estar com os amigos, refugiando-se cada vez mais no seu ridículo dia-a-dia, de casa-emprego-casa… Quando nada tinha que fazer ligava a TV e ficava horas a fio, deitado no sofá ou na cama, queimando os seus neurónios com programas de qualidade duvidosa… Seus ditos amigos, há muito o haviam julgado… Classificavam-no agora: “Egocêntrico, mania da grandezas, e mania de pensar que é bom de mais para falar connosco”. Esta foi a segunda vez que teve de encarar a realidade… Nunca na sua vida tinha precisado realmente de ajuda… Nunca soube que hoje em dia as pessoas vivem olhando para o seu umbigo, que tudo à sua volta lhes passa ao lado e que não percebem quando alguém precisa de um ombro amigo. Os seus amigos não conseguiram perceber que Dr. José, não era o Homem de Ferro, a quem nada, ou ninguém o conseguia afectar… que era apenas uma pessoa de carne e osso, com os seus altos e baixos como todas as outras… Dr. José ficou a saber que quando precisou de ajuda, devia era ter gritado e esperneado até alguém notar e lhe estendesse o braço, para o tirar do rio de agonia no qual estava a ser levado…
Dr. José está agora num coma profundo numa unidade hospitalar, vítima de um acidente de automóvel, quando conduzia a mais de 180 Km/h depois de ter bebido um pouco demais…
Hoje não me consigo olhar ao espelho… Sinto vergonha… Dr. José considerava-me e eu considerava-o em tempos o melhor amigo… Absorto na minha ridícula vidinha, não fui capaz de ver que o meu melhor amigo precisava de uma tábua de salvação, de pelo menos uma palavra amiga ou de conforto… Para mim Dr. José não está na sua situação actual, vítima do álcool e de condução irresponsável mas vítima de uma sociedade em que os sentimentos e valores escasseiam… Só me leva a pensar em que mundo vivemos, e para onde vamos… Afinal o ser humano não é nada de especial, não é o ser dominante… É apenas outro ser vivo em que a lei do mais forte predomina, e o que interessa é a propagação da espécie… O que nos reserva o futuro? Algo de muito mau… Provavelmente, cada um será responsável pelo seu trabalho, escrupulosamente cumprido sem olhar a meios, e uma nova profissão surgirá que será a de ter filhos, visto o resto da população estar demasiado concentrada no seu trabalho e não ter tempo para tal coisa…
Nesse dia todos os seus amigos e conhecidos juntaram-se no hospital… Como é irónico… e provavelmente demasiado tarde…
Quantos aos outros não sei… mas certamente terei um pesado fardo e sentimento de culpa para enterrar… E foi preciso o meu querido amigo ficar em coma para me aperceber de quão triste e mesquinho é o mundo…



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